quarta-feira, 10 de junho de 2015

ME BATA UM ABACATE // Bendita, ateia


Sérgio Maggio
Cronista do Gastronomix

De uma hora para outra, o local de trabalho, uma região de tranqüilidade para Ditinha, virou um inferno. Apaixonada, a chefe e mãe de santo Teresa (de Omolu) resolveu largar tudo e seguir para Europa com um consulente. Em seu lugar, assumiu Estevão, um homem sisudo, bíblico, evangélico de batismo. De imediato, Ditinha sentiu-se isolada, escanteada, sem assunto nos cafezinhos. O mundo se restringiu à sua rotina medíocre de conferir números, checar notas fiscais. Nada era motivo de piada, gargalhadas, comidas repartidas e confissões, muitas confissões com a chefia.

De poucas palavras, Estevão nitidamente achou a moça suspeita. A primeira agonia foi constatar que a única subordinada daquela seção portava guias de candomblé. Não poderia ser uma pessoa confiável. Verificou que, sobre a mesa da “perdida”, descansava uma figa de guiné, uma imagem de uma pomba-gira e um pote com sal grosso e alfazema. Resolveu então marcar território. Abriu uma Bíblia tamanho família ao lado do computador, daquelas com bordas douradas e afixou uma mensagem. “Jesus é a única verdade”.

Ditinha sentiu de imediato a pressão. Resolveu então ir toda de vermelho Iansã para o trabalho. Afinal, era quarta-feira, dia de saudar oyá. Soltou os cabelos cacheados, acentuou as contas e colocou lindas tamancas tribais. Chegou mais cedo e borrifou o ambiente com alfazema e pó de pemba. Trouxe ainda um tridente de Exú e fincou no vaso de “Comigo ninguém pode”, que colocou atrás da porta de entrada.

Estevão se sentiu provocado e resolveu pregar trechos de Salmos no Mural da Sala. Ligou para o Serviço de Informática e pediu que eles alterassem a tela de descanso dos dois únicos computadores daquela seção. Nela, Jesus abria os braços e um sol irradiava ao seu redor. Isso foi o suficiente para que Ditinha tirasse do guarda-roupa sua série de camisetas de Umbanda, com as frases estampadas no peito: “Exú é Fiel, “Seu Tranca Rua é poder” e “Com minha Padilha ninguém pode”. Imediatamente, Estevão rebateu com música ambiente gospel, saindo do alto-falante. O que fez Ditinha colocar fones no ouvido para escutar pontos de macumbas.
Não tinha jeito. Aquela seção virou palco de uma guerra santa. Os dois não trocavam um ‘ai”. Ele apenas checava o material dela, impecável diga por sinal, e rubricava. A vida seguia em riste quando, numa tarde de sexta-feira, Estevão e Ditinha foram para uma reunião. Era expediente da moça da limpeza. Entretida ao celular, foi limpado tudo e trocando de lugar. A miniatura da Maria Padilha foi para ao lado Bíblia Sagrada de Estevão, uma placa com versículo bíblico próximo à figa de guiné de Ditinha. Em alguns minutos, havia ali uma antropofagia religiosa jamais admitida por ambos.

Quando eles voltaram e viram aquela situação, entraram em profundo estado de silêncio. Estevão e Ditinha pareciam dois monges mergulhados em reflexão. Não me pergunte o que se passou na cabeça de cada um. O fato é que depois desse episódio uma inquietante harmonia se estabeleceu por ali.  

Ditinha e Estevão passaram a trocar palavras, interessaram-se um pelo outro, estabeleceram uma vida extra trabalho e tornaram-se amigos. Ele foi visto num terreiro de candomblé e ela num culto evangélico. Não se casaram, nem fizeram sexo. Apenas, ficaram amigos de todas as horas. Ele agora usa uma guia de Ogum. Ela, adora ler os salmos antes de sair de casa. E a moça da limpeza? Ao que se sabe, é uma ateia convicta. Não acredita em nada. Só na capacidade do ser humano de variar entre o divino e o diabólico.

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