De uma hora para outra, o local de trabalho, uma região de
tranqüilidade para Ditinha, virou um inferno. Apaixonada, a chefe e mãe de
santo Teresa (de Omolu) resolveu largar tudo e seguir para Europa com um
consulente. Em seu lugar, assumiu Estevão, um homem sisudo, bíblico, evangélico
de batismo. De imediato, Ditinha sentiu-se isolada, escanteada, sem assunto nos
cafezinhos. O mundo se restringiu à sua rotina medíocre de conferir números,
checar notas fiscais. Nada era motivo de piada, gargalhadas, comidas repartidas
e confissões, muitas confissões com a chefia.
De poucas palavras, Estevão nitidamente achou a moça suspeita. A
primeira agonia foi constatar que a única subordinada daquela seção portava
guias de candomblé. Não poderia ser uma pessoa confiável. Verificou que, sobre
a mesa da “perdida”, descansava uma figa de guiné, uma imagem de uma pomba-gira
e um pote com sal grosso e alfazema. Resolveu então marcar território. Abriu
uma Bíblia tamanho família ao lado do computador, daquelas com bordas douradas
e afixou uma mensagem. “Jesus é a única verdade”.
Ditinha sentiu de imediato a pressão. Resolveu então ir toda de
vermelho Iansã para o trabalho. Afinal, era quarta-feira, dia de saudar oyá.
Soltou os cabelos cacheados, acentuou as contas e colocou lindas tamancas
tribais. Chegou mais cedo e borrifou o ambiente com alfazema e pó de pemba.
Trouxe ainda um tridente de Exú e fincou no vaso de “Comigo ninguém pode”, que
colocou atrás da porta de entrada.
Estevão se sentiu provocado e resolveu pregar trechos de Salmos no
Mural da Sala. Ligou para o Serviço de Informática e pediu que eles alterassem
a tela de descanso dos dois únicos computadores daquela seção. Nela, Jesus
abria os braços e um sol irradiava ao seu redor. Isso foi o suficiente para que
Ditinha tirasse do guarda-roupa sua série de camisetas de Umbanda, com as
frases estampadas no peito: “Exú é Fiel, “Seu Tranca Rua é poder” e “Com minha
Padilha ninguém pode”. Imediatamente, Estevão rebateu com música ambiente
gospel, saindo do alto-falante. O que fez Ditinha colocar fones no ouvido para
escutar pontos de macumbas.
Não tinha jeito. Aquela seção virou palco de uma guerra santa. Os dois
não trocavam um ‘ai”. Ele apenas checava o material dela, impecável diga por
sinal, e rubricava. A vida seguia em riste quando, numa tarde de sexta-feira,
Estevão e Ditinha foram para uma reunião. Era expediente da moça da limpeza.
Entretida ao celular, foi limpado tudo e trocando de lugar. A miniatura da
Maria Padilha foi para ao lado Bíblia Sagrada de Estevão, uma placa com
versículo bíblico próximo à figa de guiné de Ditinha. Em alguns minutos, havia
ali uma antropofagia religiosa jamais admitida por ambos.
Quando eles voltaram e viram aquela situação, entraram em profundo
estado de silêncio. Estevão e Ditinha pareciam dois monges mergulhados em
reflexão. Não me pergunte o que se passou na cabeça de cada um. O fato é que
depois desse episódio uma inquietante harmonia se estabeleceu por ali.
Ditinha e Estevão passaram a trocar palavras, interessaram-se um pelo
outro, estabeleceram uma vida extra trabalho e tornaram-se amigos. Ele foi
visto num terreiro de candomblé e ela num culto evangélico. Não se casaram, nem
fizeram sexo. Apenas, ficaram amigos de todas as horas. Ele agora usa uma guia
de Ogum. Ela, adora ler os salmos antes de sair de casa. E a moça da limpeza?
Ao que se sabe, é uma ateia convicta. Não acredita em nada. Só na capacidade do
ser humano de variar entre o divino e o diabólico.
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