Cronista do Gastronomix
Havia alguma coisa errada com a história de amor de Benito e Cândida.
Tudo parecia perfeito se não fosse um detalhe.
A moça descolada não queria que ele conhecesse a família. Logo ele, um
cara que acredita piamente naquela máxima, “família é a base de tudo”. Ela se irritava quando vinha dele a cobrança
para um jantar. “Isso é coisa de novela das nove”, replicava. Noveleiro
confesso, Benito se ofendia: “O que você tem contra os folhetins?”
A situação beirava o desgaste quando Cândida perdeu a paciência e
resolveu ceder à pressão do namorado. Afinal, Benito era um pedaço de homem.
Daqueles que, quando tirava a camisa, o povo se abanava e dizia “Ah, me bata um
abacate!”. Para não perder esse “homem-vitamina”, Cândida marcou o encontro
para o próximo domingo. “Na hora do almoço?”, vibrou Benito. “Melhor não, vamos
ao cair da noite”, rebateu Cândida.
Benito era um coração aos pulos de tanta ansiedade. Subiu os 25 andares de elevador como quem
entrasse na igreja, sob a marcha nupcial e com as mãos encharcadas de suor. A
porta do 2502 estava entreaberta. Ele bateu palmas, buzinou, disse alô e nada.
Resolveu então entrar e se deparou com uma sala de estar deslumbrante. Obras de arte de diversas correntes
estéticas, do barroco ao contemporâneo, convivendo com peças sacras e
esculturas geométricas. Ao fundo, uma varanda que revelava toda a pujança da
megalópole. Enquanto admirava a paisagem, descobria que Cândida é filha de uma
família riquíssima. Caminhou até esse espaço e, quando contemplava cada vão
daquela vista, um som estridente invadiu o local.
Era um cão, ou melhor uma miniatura de cão, de latido finíssimo e
continuado. Estridente, histérico e
descontrolado, o animal avançava sobre o tornozelo com dentes similares a de
uma piranha esfomeada. Num ímpeto, Benito movimentou bruscamente a perna e,
como num lance de futebol, o bicho voou pela sacada que nem uma bola em direção
ao gol. Em questão de segundos, aquela desagradável criatura sumiu aos olhos.
Podia-se ouvir uma batida do corpo estatelando-se ao chão quando uma doce voz
interrompeu. “Então, você é o famoso Benito. Seja bem-vindo!”
A mãe de Cândida estava só. Logo, atrás vieram o pai e a filha. Todos,
elegantíssimos. Ainda atordoado. Benito alegou estar nervoso porque entrou sem
permissão. Os anfitriões trataram lodo de deixar o rapaz a vontade. “Cândida,
minha filha, procure a Cris Charlote. Estranho, ela não estar aqui”, disse a
mãe. De pronto, Benito se mostrou surpreso. “Não sabia que você tinha uma
irmã!”. Todos riram. “É como se fosse. Cris Charlote é nossa cria canina. Está
conosco há uma década. É uma cadela premiada internacionalmente. Ganhou vários
desfiles na sua categoria. É adestrada e constantemente faz figurações em
filmes, novelas e seriados”, contou o futuro sogro.
Benito perdeu a cor rosa das bochechas. Nervoso, simulou um mal estar.
Todos se desconcertaram. “Desculpem-me, tomei uma vitamina de abacate antes de
chegar aqui.”
A essa altura, o sumiço de Cris Charlote era um acontecimento. Benito
escapuliu dizendo que precisava repousar. Meia hora depois, estava enterrando o
corpo de Cris Charlote no jardim ao lado da Catedral. Uma década depois, o
desaparecimento da cachorrinha é um mistério que atormenta a família. Os pais
de Cândida vivem a se perguntar: “O que teria acontecido a Cris Charlote?”.
Para aliviarem a solidão, convidaram a filha e o futuro genro para dividirem
aquele monumental apartamento com eles.
Hoje, casados, Benito e Cândida vivem um mar de rosas, têm três filhos
e nenhum animal de estimação. De vez em quando, para aliviar o segredo mortal,
Benito visita o túmulo de Cris Charlote, coloca flores e saí dali para a
primeira lanchonete, onde toma uma vitamina de abacate em intenção à alma da falecida.
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