quarta-feira, 27 de maio de 2015

ME BATA UM ABACATE // O que teria acontecido a Cris Charlote?

Sérgio Maggio
Cronista do Gastronomix

Havia alguma coisa errada com a história de amor de Benito e Cândida. Tudo parecia perfeito se não fosse um detalhe.  A moça descolada não queria que ele conhecesse a família. Logo ele, um cara que acredita piamente naquela máxima, “família é a base de tudo”.  Ela se irritava quando vinha dele a cobrança para um jantar. “Isso é coisa de novela das nove”, replicava. Noveleiro confesso, Benito se ofendia: “O que você tem contra os folhetins?”

A situação beirava o desgaste quando Cândida perdeu a paciência e resolveu ceder à pressão do namorado. Afinal, Benito era um pedaço de homem. Daqueles que, quando tirava a camisa, o povo se abanava e dizia “Ah, me bata um abacate!”. Para não perder esse “homem-vitamina”, Cândida marcou o encontro para o próximo domingo. “Na hora do almoço?”, vibrou Benito. “Melhor não, vamos ao cair da noite”, rebateu Cândida.

Benito era um coração aos pulos de tanta ansiedade.  Subiu os 25 andares de elevador como quem entrasse na igreja, sob a marcha nupcial e com as mãos encharcadas de suor. A porta do 2502 estava entreaberta. Ele bateu palmas, buzinou, disse alô e nada. Resolveu então entrar e se deparou com uma sala de estar deslumbrante.  Obras de arte de diversas correntes estéticas, do barroco ao contemporâneo, convivendo com peças sacras e esculturas geométricas. Ao fundo, uma varanda que revelava toda a pujança da megalópole. Enquanto admirava a paisagem, descobria que Cândida é filha de uma família riquíssima. Caminhou até esse espaço e, quando contemplava cada vão daquela vista, um som estridente invadiu o local.

Era um cão, ou melhor uma miniatura de cão, de latido finíssimo e continuado.  Estridente, histérico e descontrolado, o animal avançava sobre o tornozelo com dentes similares a de uma piranha esfomeada. Num ímpeto, Benito movimentou bruscamente a perna e, como num lance de futebol, o bicho voou pela sacada que nem uma bola em direção ao gol. Em questão de segundos, aquela desagradável criatura sumiu aos olhos. Podia-se ouvir uma batida do corpo estatelando-se ao chão quando uma doce voz interrompeu. “Então, você é o famoso Benito. Seja bem-vindo!”

A mãe de Cândida estava só. Logo, atrás vieram o pai e a filha. Todos, elegantíssimos. Ainda atordoado. Benito alegou estar nervoso porque entrou sem permissão. Os anfitriões trataram lodo de deixar o rapaz a vontade. “Cândida, minha filha, procure a Cris Charlote. Estranho, ela não estar aqui”, disse a mãe. De pronto, Benito se mostrou surpreso. “Não sabia que você tinha uma irmã!”. Todos riram. “É como se fosse. Cris Charlote é nossa cria canina. Está conosco há uma década. É uma cadela premiada internacionalmente. Ganhou vários desfiles na sua categoria. É adestrada e constantemente faz figurações em filmes, novelas e seriados”, contou o futuro sogro.
Benito perdeu a cor rosa das bochechas. Nervoso, simulou um mal estar. Todos se desconcertaram. “Desculpem-me, tomei uma vitamina de abacate antes de chegar aqui.”
A essa altura, o sumiço de Cris Charlote era um acontecimento. Benito escapuliu dizendo que precisava repousar. Meia hora depois, estava enterrando o corpo de Cris Charlote no jardim ao lado da Catedral. Uma década depois, o desaparecimento da cachorrinha é um mistério que atormenta a família. Os pais de Cândida vivem a se perguntar: “O que teria acontecido a Cris Charlote?”. Para aliviarem a solidão, convidaram a filha e o futuro genro para dividirem aquele monumental apartamento com eles.

Hoje, casados, Benito e Cândida vivem um mar de rosas, têm três filhos e nenhum animal de estimação. De vez em quando, para aliviar o segredo mortal, Benito visita o túmulo de Cris Charlote, coloca flores e saí dali para a primeira lanchonete, onde toma uma vitamina de abacate em intenção à alma da falecida.  

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