segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

EU RECOMENDO // A feijoada da Dona Fulana


Por Guilherme Fiúza (*)
Convidado especial do Gastronomix

“Numa dessas correrias de cidade em cidade para feiras, palestras e outras formas de hipnose coletiva, estacionei no aeroporto Santos Dumont, preparado para um desencontro marcado com meu carro. A passagem de ida estava a cargo de um evento, e a volta tinha sido marcada por outro. Resultado: eu retornaria ao Rio de Janeiro pelo aeroporto do Galeão, muito distante do meu carro. Mesmo assim fui dirigindo para o Santos Dumont, o que no final significaria uma viagem de táxi a menos, o que já é um lucro enorme.

Quando voltei de Porto Alegre dois dias depois, preparei os nervos para embarcar num daqueles táxis bandalhas que disputam o ponto como se o aeroporto fosse uma boca de fumo. Me desvencilhei de uns dois taxistas mais histéricos e embarquei num amarelinho em péssimo estado, mas cujo motorista era no mínimo menos sôfrego. Logo constatei que era um cara de bem, que não adulterava taxímetro (exceção) e tinha um bom papo. Depois de algum tempo com os vidros fechados e o ar-condicionado ligado, entendi que não podia dar tudo assim tão certo: começamos a assar dentro do amarelinho.

O simpático taxista ainda comentou que "estava demorando a gelar, né?", tentando uma saída honrosa. Eu disse que não tinha problema, abri a janela e disse que preferia mesmo a brisa da Baía de Guanabara. Ele ficou nitidamente aliviado, mas o alívio durou uns 100 metros, até pararmos num monumental engarrafamento na Linha Vermelha. Não era horário de rush, mas não é que o trânsito estivesse lento: praticamente não andava. O rádio não informava sobre nenhum acidente grave, explosão de bueiro, passeata ou outro evento extraordinário. O paciente motorista iniciou então sua tese sobre a explosão populacional e o colapso das grandes cidades.
Enquanto derretia dentro do táxi, tentei como pude assimilar as idéias de meu companheiro de viagem. Resolvi acender um cigarro, e fiz a alegria de um vizinho de engarrafamento, que estava doido para fumar e pôde tranqüilamente emparelhar e filar um cigarro meu de janela para janela.
Levaríamos duas horas do Galeão ao Santos Dumont - um recorde, que a cada 15 minutos aumentava a empolgação do meu interlocutor em sua tese sobre o apocalipse urbano. Depois de cerca de uma hora e meia de suplício, ele mudou de assunto. No meio daquela sauna desumana, ao sol de meio-dia, começou a falar de feijoada.

O cara era legal, e resolvi não cortar. Só pensei: "Serei capaz de suportar mais essa provação". Ele deve ter confundido meu silêncio com interesse, porque desembestou a descrever as lingüiças, os toucinhos e o feijão incomparáveis da Dona Fulana, cujo nome o calor dissolveu na minha cabeça. Depois de certo tempo, por alguma reação química, comecei inacreditavelmente a sentir fome. Devia estar delirando, porque não era possível apetite numa situação daquelas. Mesmo assim, arrisquei a pergunta: "Onde você comeu a feijoada da Dona Fulana?"

Meu parceiro de viagem respondeu placidamente: "Ali, naquele canteiro em frente ao Santos Dumont, numa barraquinha. Doze reais. Aliás, estamos chegando. Até que enfim, né, doutor?"

Desci do táxi e caí de boca na feijoada da Dona Fulana, que era mais do que honesta: era maravilhosa. Melhor do que qualquer comida de aeroporto que já ingeri nos ambientes mais limpos e refrigerados. Demorei a reencontrar meu carro, mas foi um reencontro feliz.

PS: o engarrafamento monumental se deveu a um acidente de trânsito no Centro da cidade. Como sociólogo, meu amigo taxista era um excelente degustador.

(*) Guilherme Fiúza é jornalista e autor de vários livros, entre eles: "Bussunda - a Vida do Casseta" e “Meu Nome não é Johnny”, adaptado para o cinema. Ele escreve na Revista Época e assina o blog http://colunas.epoca.globo.com/guilhermefiuza.

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