segunda-feira, 21 de agosto de 2017

EU RECOMENDO // Chá no Vietnã

Ana Carolina Aires (*)
Convidada especial do Gastronomix

Sabe aquelas imagens e vídeos extremamente caricatos sobre o Vietnã, sobre um trânsito caótico em que motos, carros e pedestres concorrem por um pedacinho de asfalto, tudo ao mesmo tempo agora, sem que se possa entender como é que no final das contas todos saem ilesos??

Pois é! É tudo verdade!! A ideia vale para grandes cidades vietnamitas como Hanoi e Ho Chi Minh mas esta é uma realidade muito, mas muuuito distante quando se pensa na pequenina Hoi An, especialmente em sua Old Town. Nela, parece que o tempo passou beeem devagar. A cidade antiga de Hoi An foi tombada como Patrimônio Mundial pela UNESCO por ser um belo exemplo de porto comercial do sudeste asiático que preservou uma grande parte do seu legado, ainda ilustrado por templos chineses, casas de antigos mercadores japoneses e armazéns de chá.

Antes um importante porto comercial do sudeste asiático, hoje Hoi An é a queridinha dos turistas, que impressiona pelo colorido de suas casas e lanternas de inspiração chinesa que cruzam as ruas do centro antigo, cheio de restaurantes, cafés e numerosíssimas alfaiatarias!


 É uma ilha de rara tranquilidade em meio a um país nada sossegado. Pelo que li, o trânsito de veículos estaria proibido no centrinho mas sim, as motos estão lá por toda parte (nada comparável aos grandes centros, ok)? A todo momento ouve-se um “bip” de uma bendita para os turistas que “ousam” circular por aquele cantinho todo especial da cidade e, em meio ao vai e vem de gente, motos passando e alguns vendedores ambulantes, encontramos um verdadeiro oásis de tranquilidade com uma proposta única!

No ano 2000, um grupo de locais fundou a ONG Reaching Out (ou Hòa Nhập, que significa integração), com o objetivo de ajudar portadores de necessidades especiais por meio da capacitação para o trabalho. Ao fazê-lo, deram um novo significado para a vida dessas pessoas, a partir da percepção de que elas estão aptas a integrar a vida em sociedade, a trabalhar e, sim, adquirir a própria independência.

No início, a ONG mantinha apenas uma lojinha de produtos vietnamitas autênticos elaborados de forma artesanal pelos integrantes do grupo, a Reaching Out Arts & Crafts. O lucro proporcionava e ainda proporciona o treinamento e trabalho dos atendentes e artesãos, portadores de diferentes tipos de necessidades especiais, os quais hoje compõem um time de setenta pessoas e dão suporte ao trabalho de outras trinta ao redor do Vietnã.

Já no ano de 2012, o mesmo grupo fundou uma deliciosa casa de chás no centrinho da cidade, a Reaching Out Teahouse, cujo conceito (como não poderia deixar de ser) é o de um projeto social de inclusão. O que, porém, a torna tão diferente e especial são as suas amáveis atendentes, todas surdo-mudas, que ao longo dos dias se revezam servindo chás e cafés orgânicos trazidos em louças lindinhas produzidas pelo grupo, sucos frescos e cookies preparados pela casa, além da atmosfera criada pelo silêncio.

O menu pode ser conferido pelo site http://reachingoutvietnam.com/wp-content/uploads/2016/07/ro_teahouse_menu-web_en_fa_20160715.pdf e inclui três tipos de chás e uma infusão, todos orgânicos e vietnamitas: chá verde (levemente adstringente, tradicionalmente servido como welcome tea no Vietnã), oolong ou azul (floral, proveniente dos terrenos mais altos do centro do país, para o qual é recomendada uma segunda infusão), jasmim (o mais apreciado e vendido no norte do Vietnã, que tecnicamente é um chá verde aromatizado com jasmim) e o batizado como Red Lantern (oriundo da planta Cleistocalyx operculatus, que consiste numa infusão de uso medicinal livre de cafeína, uma mãozinha para aqueles que abusarem das delícias gastronômicas locais). Para os amantes do chá, o melhor mesmo é pedir o set e escolher três dentre as variedades disponíveis. O mesmo vale para os apaixonados pelo café!

Nem pense que por ali a comunicação fica prejudicada pelas restrições da fala. Ao contrário, ela flui perfeitamente graças aos pequenos blocos de madeira em que foram gravadas as palavras-chave sobre os pedidos essenciais normalmente formulados numa casa de chás (bill, hot water, cold water, thank you...).
As atendentes são extremamente cordiais! Invariavelmente, ostentam aquele sorriso verdadeiro, típico do povo do sudeste asiático! Além de prestativas, elas são muito, mas muito eficientes! Ao menor sinal de movimento na mesa, uma já aparecia para saber se precisávamos de algo. Por sua vez, o ambiente é uma graça e muito acolhedor, daqueles em que parece que todos os objetos foram meticulosamente pensados e selecionados (porém nada grandioso, ok)?
Deram-nos uma mesa de frente para a rua, o que tornou a nossa tarde ainda mais agradável, com a oportunidade de observar o movimento enquanto degustávamos o nosso chá,
biscoitinhos e o café vietnamita (coado). 
Fora isso, os clientes são orientados a sussurrar a fim de que todos os demais possam desfrutar do silêncio enquanto se deliciam com os produtos disponíveis. Melhor impossível! É um lugar de sossego e discrição, em que os frequentadores realmente parecem entender a proposta. Acho que nem o turista mais barulhento e o maior adepto da “selfolia” ousaria quebrar a atmosfera de paz e tranqüilidade daquele estabelecimento!

Ao final do serviço, as atendentes muitas vezes sugerem que o cliente compareça à lojinha situada na rua detrás (em frente ao festejado restaurante Morning Glory, outro must go), caso tenha interesse em adquirir algum dos produtos que conheceu, inclusive réplicas das louças utilizadas. Por favor, não interprete como uma proposta caça-níquel! Como a própria ONG explica, as garçonetes são orientadas a fazê-lo porque as restrições na fala impossibilitariam uma comunicação eficiente sobre as características dos produtos. Isto sem falar que muita gente nem sabe que o trabalho da ONG começou pelo artesanato e não pela casa de chás.

Os preços na Reaching Out Teahouse são ligeiramente superiores aos praticados nas redondezas mas em geral é o que se espera quando se opta por produtos orgânicos ou de um seleto grupo de pequenos produtores locais, não? Isto sem falar que, uma vez revertido para uma iniciativa tão valorosa, o pouco a mais que se gasta está longe de ser um problema. Ao contrário, dá um sentido maior à experiência. Já os da loja de artesanato são sim, mais puxados.

No sudeste asiático, tivemos outras experiências de cunho social mas nada se comparou à que vivenciamos na Reaching Out Teahouse! Digo isso não apenas pela qualidade do serviço mas sim, e especialmente, por aquela atmosfera peculiar, para a qual até os clientes cooperam. Em uma palavra: inesquecível!

É uma fofura de lugar!Adoramos contribuir, afinal, muito, mas muitíssimo melhor que dar esmolas é promover de uma forma mais verdadeira os menos favorecidos, auxiliando-os a conquistar a própria independência!

As propostas sociais com as quais nos deparamos nessa viagem e, sobretudo, a dessa específica casa de chás mexeu com todos os nossos sentidos e em especial com os nossos corações!Foi uma verdadeira lição de vida dada por pessoas de quem tanto se duvida! Pessoas para as quais tantas vezes olhamos e imaginamos que precisam de cuidado fazem com que qualquer pessoa saia de lá se sentindo cuidada por mãos tão aptas e preparadas para o trabalho quanto as de qualquer um.

Enfim, se estiver pela cidade, não desperdice a grande oportunidade de desfrutar a hospitalidade vietnamita, esquecer dos problemas e prestigiar uma iniciativa tão bela quanto essa! Você sairá de lá com a alma mais leve! Só, por favor, não se esqueça: ali o silêncio vale ouro.

Taste the silence! Enjoy the silence!


(*) Ana Carolina Aires é formada em Direito. Apaixonada por viagens, chás, cafés e uma boa mesa. Adora compartilhar as experiências vividas em suas andanças em mais de 40 países visitados.

Um comentário:

Eloína Telho disse...

Texto lindo e sensível. Adorei!