quinta-feira, 19 de junho de 2014

30ml // Carta aberta à barista Isabela Raposeiras

Sandro Biondo
Colunista de Café do Gastronomix

Prezada Isabela, 

Não sou barista, especialista, crítico ou algo que o valha. Na verdade, nem arvoro me considerar grande entendedor de cafés. Neste espaço quinzenal a proposta, por diletantismo, é exercer o achismo palpiteiro e irreverente que muitos de nós, brasileiros, praticamos sobre algumas áreas de interesse - seja o futebol, o samba ou mesmo o café. Para autoridades no assunto, aviso que talvez figure como jogo de sete ou mais erros.

Por mais que este seja lugar que busca desanuviar o dia a dia, versando geralmente sobre amenidades e as levezas muitas que devem acompanhar uma boa xícara de café, às vezes é preciso falar um pouco mais sério. 

Louvado seja seu trabalho árduo como especialista, educadora, empreendedora e divulgadora do bom paladar cafeinômano, algo a que todos nós, apreciadores, devemos agradecer de pés juntos. Aqui, já devo ter dado loas a seu nome ao menos meia dúzia de vezes, reputando-a como grande profissional que é e sua casa, o Coffe Lab, como templo nacional da quase sagrada bebida. 

À ode segue a zanga de vê-la tentando protagonizar movimento em rede social ao levantar a bandeira "eu também sou brasileira". Segundo seu relato, você teria descoberto "fazer parte de uma minoria que sofre preconceito e discriminação: a elite branco-europeia nascida no Brasil". (Leia texto na íntegra postado no Facebook do Coffee Lab).

Aqui não estamos para julgar a fundo suas razões para isso, seja em resposta a declarações do ex-presidente da República ou de parte da imprensa. Mas é inadmissível que me cale frente ao fato de que pessoas como nós (eu, você, muitos dos leitores aqui incluídos) não são nem de perto alvo fácil de discriminação e preconceito racial neste país.

Você deve de fato sofrer, como empresária, com a escandalosa carga tributária, com a miríade burocrática que assola ações empreendedoras, com a sempre presente ameaça de inflação, com o chamado "Custo Brasil", com a recessão econômica... é possível até que tenha transposto barreiras pelo simples fato de ser mulher numa sociedade ainda machista. Mas preconceito racial, não. Tentar se imiscuir num protagonismo a que não se pertence não é louvável. E não faz rima à sua boa reputação. 

Preconceito racial, social e intelectual quem sofreram e sofrem são os negros, os pobres, as mães solteiras de filhos múltiplos, os drogaditos à margem da sociedade, os homossexuais, os devotos das religiões afrobrasileiras, os portadores de deficiência física e mental e parte maior dos trabalhadores assalariados em - como se diz - subempregos.  

Caetano e Gil, ensinando que o Haiti talvez fosse aqui, talvez não, previram que imigrantes de diferentes cores e etnias também pudessem sofrer discriminação sob o sol tupiniquim. Haitianos e negros africanos e asiáticos e egressos de outros países da América Latina, sim... mas imigrante europeu e suas gerações, não: sobre este solo se vive, desconfio, o diametralmente oposto a isso. 

Cabe lembrar, aliás, que se o Brasil tem hoje envergadura mundial no mercado produtor de café, a matéria-prima que a glorificou, isto se deve ao trabalho, suor e até a vidas de escravos africanos trazidos para cá pelas mãos de colonizadores europeus. Hoje não se fala mais em escravidão. Mas ainda e infelizmente vigora a ordem na qual se mostra "aos quase brancos pobres como pretos como é que pretos, pobres e mulatos e quase-brancos-quase-pretos de tão pobres são tratados". 

Nesse sentido, tanto ampla quanto restritamente, seu manifesto é desserviço: se vale, sim, da democracia. Mas anda para trás nas raias já tão combalidas do convívio cidadão.

PS: para quem quiser ouvir o lado da barista Isabela Raposeiras, leia entrevista publicada na coluna Terraço Paulistano, da Revista Veja SP.

2 comentários:

Daniel disse...

Talvez Isabela não tenha sido muito feliz ao insinuar que a elite branco-europeia sofre preconceito. Mas eu entendi sua atitude, que nada mais foi que um grito contra a luta de classes que esse governo tem promovido. Eu não quero viver num país em que elite e trabalhadores, negros e brancos, héteros e gays, homens e mulheres vivam em pé de guerra. Quero viver num país em que todos sejam iguais e convivam em harmonia! E eu não creio que seja tachando certos grupos de bandidos ou vitimizando outros que iremos dar oportunidades iguais aos trabalhadores, conferir direitos aos homossexuais, incluir os negros e tratar homens e mulheres com igualdade.

Anônimo disse...

Demais Sandro, quanta elegância!
A Raposeiras sempre será um símbolo para nós, mulheres que trabalham com café.
Mas admito ter perdido a linha ao tomar conhecimento de seu "manifesto".
Lendo você, começo a aceitar que hajam formas de falar as coisas onde eu não precise dizer exatamente tudo o que pensei... Hahaha!