segunda-feira, 23 de março de 2009

EU RECOMENDO // África: onde o nojo não tem vez


Por Fábio Zanini (*)
Convidado especial do Gastronomix

“Comer na África é um ato informal, e muitas vezes, um ato de coragem. Lembro de uma longa viagem pelo sul do Senegal, em outubro de 2004, em que eu estava havia 14 horas sem colocar nada na boca, exceto por horrorosas bolachinhas teoricamente de chocolate (na verdade com gosto de terra).

Era uma daquelas situações, tão comuns na África, em que tudo deu errado, o carro em que eu me espremia com outras sete pessoas atrasou, a estrada estava interditada e a fila da balsa para cruzar o rio Gâmbia demorou quatro horas, em vez dos prometidos 45 minutos. Qualquer restaurante minimamente decente estava a quilômetros, muitos quilômetros.
Quase 10 da noite, no meio da estrada, o carro para. Hora de comer alguma coisa, graças a Deus, e eu e meus colegas passageiros fazemos fila numa barraquinha de madeira em que uma senhora servia um sanduíche suspeito. Sem cerimônia, e sem frescuras como luvas ou guardanapo, ela abria uma baguete com a mão, pegava um pedaço de carne com a mão, juntava um pedaço de alface com a mão e servia ao cliente. Baratíssimo.
Na minha vez, o sanduíche foi passando de mão em mão, até chegar a mim. Fiz uma certa cara de nojo, o que levou meus colegas passageiros a se compadecerem deu meu espírito fraco de “toubab” (homem branco em wolof, a língua local). Um deles me pagou o sanduba, revelando mais um traço da cultura africana, a imensa generosidade. Eu não tinha como recusar.
Carne de Camelo. Foto: Fabio Zanini/Arquivo pessoal
Pulo agora para a Etiópia, quatro anos à frente. Estamos em julho de 2008, na cidade de Jijiga, um entreposto comercial perto da fronteira com a Somália. O clima de terra de ninguém, coalhado de malfeitores e contrabandistas, não ensejava nenhum tipo de delírio gastronômico. A cidade tem cafés em abundância, se é que se pode chamar de cafés os pequenos ambientes com mesinhas e cadeiras de plástico debaixo de telhados de zinco. O cafezinho é parte da cultura etíope, e de lá vêm alguns dos melhores grãos do mundo. Uma briga milionária por direitos autorais opôs até pouco tempo produtores locais e a gigante norte-americana Starbucks, que usava marcas de café etíope sem pagar nada por isso.
O único restaurante da cidade tinha um prato no cardápio: perna de cabrito, acompanhado de arroz com uva passa, que devorei com rapidez, com a mão mesmo, como se fosse uma enorme coxinha de galinha. Mas havia outra opção, me disseram alguns moradores. Na parte de trás da cidade, bem no meio do mercado público, procure o matadouro de camelos.

Sanduíche de carne de camelo. Foto: Fabio Zanini/Arquivo pessoal
Camelos naquela região são mais numerosos que gatos e cachorros. No meio das cidades, caminham em grupos, puxados por seus donos, ou vivem abandonados, como se fossem vira-latas. Esses, dizem os locais, dão os melhores churrascos.
Atrás do mercado, como haviam me informado, um imenso açougue me aguardava. Pedaços imensos de carne vermelha dependuravam-se do teto, presos por enormes ganchos de metal. Carne de camelo, e a fila estava grande. Muitos compravam apenas o suficiente para o almoço ou um lanchinho do meio da tarde. Bem ali ao lado, uma grelha improvisada, em cima de blocos de cimento no chão poeirento, transformava as lascas de camelo em carne moída. Perfeita se acompanhada de pão sírio, também meio sujo de terra. Informal e um tanto perigoso, mas, posso garantir, deliciosamente africano”.
(*) Fábio Zanini, 33 anos, é jornalista e trabalha na Folha de S.Paulo. Formado pela Escola de Comunicações e Artes da USP, com mestrado em relações internacionais pela School of Oriental and African Studies da Universidade de Londres. Entrou na Folha em 1995 e, desde então, foi repórter da Agência Folha, editor-assistente da Revista da Folha, correspondente em Londres, repórter de Brasil e da Sucursal de Brasília. É um aficionado pelo continente africano e escreve um blog chamado Pé na África.

2 comentários:

Anônimo disse...

Muito bacana a nova coluna!
E interessantíssima a experiência do Fábio Zanini! Estive na África no mês passado e pude constatar a informalidade e a generosidade do povo africano.
Parabéns ao blog por proporcionar a seus leitores posts tão instigantes.
Grande abraço,

Anônimo disse...

Ótimo texto para inaugurar a coluna...